Total de visualizações de página

domingo, 26 de junho de 2011

CONTO: O vaqueiro que não sabia mentir

O VAQUEIRO QUE NÃO SABIA MENTIR

Era uma vez um fazendeiro muito rico. O fazendeiro tinha dois orgulhos. Primeiro, seu boi Barroso, o maior, o mais forte, o mais bonito, o animal mais valioso de toda a região. Segundo, um vaqueiro que trabalhava na fazenda. O moço era de confiança. O moço não sabia mentir. O fazendeiro costumava dizer:
- Por esse eu ponho a mão no fogo! Esse só mente pra mim no dia de São Nunca!
        O povo caçoava:
       - Todo mundo mente! Vai esperando. Um dia esse vaqueiro ainda lhe passa a perna!
       Mas o fazendeiro discordava:
      - Não tem como! Confio nele demais. Tanto é verdade que deixo meu boi de estimação na mão dele. Só aquele moço pra cuidar do boi Barroso, o meu bichinho adorado, aquela jóia cheia de carne, que muge, tem dois chifres e quatro patas.
      Um dia, o fazendeiro vizinho, um sujeito malvado e invejoso, resolveu acabar com aquela história. Foi visitar o outro e veio com essa:
     - Quer valer quanto? Aposto um saco cheio de dinheiro como faço aquele moço safado contar uma mentira da grossa.
     O fazendeiro não pensou duas vezes:
     - Tá apostado! – disse, estendendo a mão para selar o compromisso.
       Mas o tal vizinho tinha uma idéia na cabeça. Voltou para sua fazenda e já foi chamando a filha. A moça era uma flor de tão linda.
       - Você vai me ajudar a fazer aquele danado mentir.
        E contou qual era o plano. A moça ficou assustada:
       - Pai! Isso eu não faço não!
       O fazendeiro não era de brincadeiras. Mandou a filha fazer e pronto. A moça gritou:
      - Não vou!
     O fazendeiro insistiu. E a moça:
     - Não quero!
     Mas aquele fazendeiro era mau. Tanto falou, tanto fez, tanto bateu, tanto maltratou que a filha, no fim, não teve jeito.
     E assim foi.
     Um dia, o vaqueiro que não sabia mentir estava longe, no pasto, tomando conta do boi Barroso, quando a moça apareceu.
     Veio toda cheirosa, usando um vestido de flores do campo.
     O vaqueiro achou a moça muito bonita.
     - Vaqueiro, preciso falar com você!
     E a moça, fazendo o que o pai tinha mandado, disse que gostava do moço.
     O vaqueiro estranhou.
     - A gente nem se conhece!
     A moça chegou perto. Naquele dia, os dois só conversaram.
     Passou o tempo.
     A moça apareceu de novo. Veio toda cheirosa, usando um vestido de conchas do mar.
     O vaqueiro achou a moça muito linda.
     - Vaqueiro, preciso falar com você!
     E a moça, fazendo o que o pai tinha mandado, disse que não conseguia tirar o moço da cabeça.
     O vaqueiro ficou sem jeito, mas gostou.
     A moça chegou mais perto. Naquele dia, os dois se abraçaram.
     Passou o tempo.
     A moça apareceu de novo. Veio toda cheirosa, usando um vestido de estrelas do céu.
     O vaqueiro achou a moça mais linha do que tudo.
     - Vaqueiro, preciso falar com você!
     E a moça, fazendo o que o pai tinha mandado, disse que queria namorar o moço.
     O vaqueiro já estava apaixonado pela moça.
     Naquele dia, os dois namoraram o dia inteiro.
     Na despedida, fazendo o que o pai tinha mandado, a moça pediu:
     - Agora quero uma prova de amor!
     Os olhos do vaqueiro brilharam.
     - Por você moça, eu faço tudo!
     A filha do fazendeiro segurou o moço pelos ombros:
     - Então mate o boi Barroso!
     O rapaz estremeceu.
     - Mas o Barroso vale ouro! – disse ele. – É o maior, o mais forte, o mais bonito, o mais valioso animal de toda a região. Peça outra coisa, moça bonita! Peça tudo, menos isso!
     Mas a moça só queria saber do boi.
     - O boi Barroso é o xodó do meu patrão!- gritou o vaqueiro.
     A moça por dentro chorava. Mas por fora ficou firme:
     - É por isso mesmo! – disse ela. – Essa vai ser a prova de seu amor!
     O moço examinou a moça e balançou a cabeça. Depois, puxou a peixeira da cinta e matou o boi Barroso ali mesmo.
     A moça foi embora. Chegou em casa chorando. Contou tudo para o pai.
     O malvado caiu na gargalhada. No outro dia, foi visitar a fazenda do vizinho, já chegou caçoando:
     - Cadê meu saco de dinheiro?
     O outro não entendeu:
     - Como é que é isso?
     E o recém-chegado:
     - Vim cobrar minha aposta, ué!
     O fazendeiro estranhou.
     - Cobrar a troco de quê?
     E o malvado:
     - Pois chame o tal vaqueiro de sua confiança.
     O fazendeiro mandou chamar. O moço veio de cabeça baixa e chapéu na mão.
     O fazendeiro malvado só ria:
     - Diga a ele, vaqueiro. Conte que fim levou o famoso boi Barroso.
     O fazendeiro malvado achava que o vaqueiro que não sabia mentir dessa vez ia mentir, mas o vaqueiro, puxando uma viola, cantou:

EU ESTAVA NO MEU CANTO
UMA FLOR SAIU NO CHÃO
CRESCEU E FEZ UM PEDIDO
QUE RASGOU MEU CORAÇÃO
PEDIU QUE EU MATASSE O BOI
AQUELE BOI FABULOSO
AQUELE BICHO JEITOSO
O FAMOSO BOI BARROSO
EU DISSE QUE NÃO PODIA
ELA DISSE QUE QUERIA
EU DISSE EU NÃO DEVIA
ELA FEZ QUE NÃO ME OUVIA
E DISSE MAIS, MEU SENHOR.
VEIO PRA PERTO E FALOU
QUERIA SENTIR FIRMEZA
CERTEZA DO MEU AMOR
EU AMAVA DE VERDADE,
SENTIA AMOR PRA VALER
MAS SE O AMOR É INVISIVEL
O QUE É QUE EU POSSO FAZER?

PRA PROVAR QUE ELE EXISTIA
MOSTRAR QUE TAMANHO TINHA
COMETI UMA MALDADE
FOI CRIME, FOI CULPA MINHA
EU MATEI O BOI BARROSO
AQUELE BOI AMOROSO
AQUELE BICHO MANHOSO
AQUELE BOI PRECIOSO
FIZ LOUCURA AQUELA HORA
POR ESTAR APAIXONADO
SE ERREI, EU PAGO AGORA
MEREÇO SER CASTIGADO!

      O dono do boi ficou louco da vida:
     - Mataram meu boi Barroso!
     O vizinho ficou de queixo caído:
     - O danado não mentiu!
     Foi quando surgiu a moça. Veio toda cheirosa, usando um vestido branco. Pediu a palavra. Disse que estava arrependida, Chorou. Contou a verdade. Gritou. Disse que tinha feito tudo obrigada pelo pai.
     Ao ouvir isso, o vaqueiro que não sabia mentir ficou tristonho.
     Mas a moça continuou.
     Confessou que tanto veio, tanto foi, que acabou gostando do vaqueiro. Disse que agora estava apaixonada e queria casar com ele.
E assim acabou essa história.
     O fazendeiro malvado pagou a aposta e foi expulso da fazenda, prometendo deixar sua filha casar com o vaqueiro.
     O dono do boi Barroso acabou perdoando o rapaz, reconheceu seu valou e ainda deu a ele, de presente de casamento, o saco de dinheiro ganho na aposta.
      O vaqueiro que não sabia mentir e a moça bonita se casaram logo depois numa festança que durou muitos dias e muitas noites.

AZEVEDO, Ricardo. Bazar do Folclore. São Paulo: Editora Ática, 2001.
Ricardo Azevedo (escritor)
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.


Azevedo tem três filhos e publicou mais de cem livros infantis. O primeiro foi escrito quando ainda adolescente – tinha 17 anos – e foi batizado de Um homem no sótão. Seus livros receberam diversos prêmios e foram publicados em outros países, como Portugal, México, Alemanha e Holanda.
O escritor também é desenhista, autor da maioria das ilustrações de seus livros. Uma outra paixão, também presente em seu trabalho, é a cultura popular, da qual é pesquisador. Vários de seus livros abordam formas literárias sobre as raízes dos contos populares, mais especificamente dos contos maravilhosos e de encantamento, quadras, adivinhas: No meio da noite escura tem um pé de maravilha!, Contos de enganar a morte e Armazém do folclore, são alguns exemplos das influências da cultura popular na literatura infantil, todos da editora Ática.
O interesse por questões relacionadas à cultura popular remete à infância de um menino criado entre os livros do pai, Aroldo de Azevedo, professor universitário, dedicado às questões culturais do Brasil. As histórias do escritor têm como tema central as discussões sobre a existência de diferentes pontos de vista. Em O livro dos pontos de vista (Ática), um cachorro, um gato, um sapo, uma menina e um menino, entre outros personagens, dão suas versões sobre a nada fácil convivência. No mesmo tom, seguem as obras, Uma velhinha de óculos, chinelos e vestido azul de bolinhas brancas (Companhia das Letrinhas) e Nossa rua tem um problema (Ática).
 Principais obras
  • Um homem no sótão (Ática)
  • Ninguém sabe o que é um poema (Ática)
  • Trezentos parafusos a menos (Companhia das Letrinhas)
  • O leão Adamastor (Saraiva)
  • Lúcio vira bicho (Companhia das Letras)
  • Chega de saudade (Moderna)
  • A hora do cachorro louco (Ática)
  • Aula de carnaval e outros poemas (Ática)
  • Dezenove poemas desengonçados (Ática)
  • Meu nome é cachorro (Ediouro), 1999
  • No meio da noite escura tem um pé de maravilha! (Ática Editora, 2002)